APONTAMENTOS SOBRE A RODAGEM
Filmei em absoluta liberdade, com uma equipa mínima, ao longo de vários meses. Com dois ou três técnicos e os actores que iam chegando e partindo mediante as necessidades. Todos compreendemos a vertigem instalada. Íamos ajustando, corrigindo, à medida que as dúvidas se dissipavam. Na rodagem privilegiei os planos sequência, não para tentar mostrar planos bonitos, mas para estar o mais próximo possível do que se filma. Todos líamos obras de Pascoaes nas horas vagas. À noite, no solar de Gatão onde ficámos alojados, as impressões do dia evadia-nos o espírito. Depois da matéria filmada, precipitávamo-nos na acção dramática e amorosa das palavras deste idealista sensual.
Fiz o filme como se Pascoaes estivesse vivo. Vagueei vezes sem conta nos corredores de sua casa em Gatão. Horas e horas passadas no seu escritório, que ainda hoje se mantém como o Poeta o deixou há mais de 50 anos. Livros nas estantes, livros empilhados no chão, folhas em cima das secretárias, tinteiros, cartas abertas, o tabaco de enrolar espalhado, estava tudo ali à minha disposição. Segui-lhe o rasto e imaginei-lhe os gestos repetidos dos seus dias. Estar simplesmente. Anular-me e esquecer que estava apenas a fabricar um filme. Como um passageiro assediado que revisita o mundo das sombras quis mostrar tudo sem impor nada. Guilherme Pinto, actor sem qualquer experiência de cinema e que faz de Pascoaes compreendeu muito bem as minhas intenções. Penetrar no próprio cenário natural do filme (o Solar de Gatão) e permanecer em silêncio até ao fim da aventura. Sentir e apalpar a transcêndencia, pois ela estava ali, nos objectos, nas paredes da casa, na paisagem. Reduzir a acção ao essencial, evitando os estereotipos e os tiques nervosos do cinema moderno. Queria muito voltar à tradição de um cinema feito na urgência, inspirado em cineastas que admiro profundamente: Pasolini, Bresson, Ozu. Inspirei-me muito no Evangelho Segundo Mateus de Pasolini. Mostrar o mesmo idealismo, a mesma força poética das palavras, a marginalidade daqueles que adoram o caminho pelo caminho. A viagem enquanto fonte inesgotável de aprendizagem.
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