terça-feira, 3 de julho de 2007

SOMBRAS, UM FILME SONÂMBULO

um filme escrito e realizado por João Trabulo

baseado na vida e obra de Teixeira de Pascoaes

com

Guilherme Pinto,

Mónica Calle,

João Grosso,

Luís Castro

e a voz de

José Airosa

uma produção Periferia Filmes




SINOPSE
Um homem silencioso, de instinto vulcânico e visionário,
habita num velho casarão com a sua empregada e o seu motorista.
Acordado de um longo sono sai de casa
e percorre num automóvel estradas e caminhos.
O espírito desse homem, acossado por vultos e fantasmas,
vagueia sonâmbulo e disperso por entre a densa bruma de uma floresta.
Projectada na paisagem magnética, a sua sombra vai imaginando personagens,
espectros desgrenhados que passam fantasmagoricamente pelo mundo,
e vivem, para sempre, nos seus actos e palavras.
TEIXEIRA DE PASCOAES
Este filme é a história de uma obsessão pessoal. Pascoaes é, para mim, um autor sagrado, uma espécie de animal raro, lunático e febril, rasgado por um destino alucinado e uma dedicação obsessiva aos assuntos do espírito, própria dos loucos e dos génios. Um anarquista, romântico, ansioso e delirante que passava as noites e os dias a invocar fantasmas. Ele é o irmão espiritual de Homéro e Cervantes, companheiro de viagem de Quixote neste túmulo ibérico. Vi em Pascoaes um exemplo grandioso e épico do instinto de queda. Amo-o, porque se entregou todo à sua obra, ávido de arder ou de viver. Não há na nossa literatura escritor maior, mais perturbador e incandescente. Pascoaes é o verdadeiro aventureiro, espécie de Lusíadas sem outro herói que ele mesmo.
TENTAÇÃO DE EXISTIR
Gostaria que o filme fosse visto como uma viagem, sem mapas nem itinerários definidos.
É um filme que pretende deixar inscrições fortes para que o espectador construa nele a sua própria experiência. Sombras apenas sugere, não promete nada. Revela o mundo de Pascoaes através de fragmentos e estilhaços da sua obra. A dificuldade está em ordenar esses estilhaços e dar-lhes uma unidade temporal, fílmica. Seria um trabalho árduo, infindável, querer mostrar toda a fúria criadora de Pascoaes, através das possibilidades de um texto, e num só filme. Porque o que dele temos a dizer é indizível. E porque a sua obra também é indizível. É um mundo saturado na imensidão da língua portuguesa, numa fusão com o seu próprio criador. Essa figura de alucinação que se misturava com as sombras e que se julgava, ele mesmo, sombra, porque no seu espírito já não distinguia mortos e vivos, claridade e treva, sonhos e figuras de um real palpável. O mundo de Pascoaes é um mundo místico, poético, cinematográfico.
Numa primeira leitura, a estrutura do filme pode revelar-se estranha. Sequências curtas, conversas soltas, ausência de centro, tudo aponta para uma certa incoerência. Na realidade esta desordem é intencional e tem como principio uma certa atmosfera circular, minimal, como se o filme apontasse para múltiplas direcções.
Tal como Pascoaes, nenhum dos seus personagens biografados (S. Paulo, S. Jerónimo, Camilo...) gozou de boa reputação. Demoliram revolucionariamente, com a simples força da sua mensagem, um tipo de sociedade fundada sobre a violência de classe, o imperialismo e, sobretudo, a escravatura das ideias e dos corpos. Sombras trata dessa impossibilidade, procurando diluir ao máximo o que é ficção e documentário num só corpo. Trabalhar num território de eleição onde essas diferenças não se colocam e deixam de ser importantes. Por isso, quis que este filme mexesse em certas feridas mal saradas. Porque acho que um filme deve ser um perigo, uma provocação. Deve saber transformar as cinzas depois do incêndio em fonte de vida. Acredito profundamente nisso. Vivemos num tempo de comércio entre as pessoas, sem qualquer espécie de fraternidade. O filme também trata desse imenso vazio espiritual.
APONTAMENTOS SOBRE A RODAGEM
Filmei em absoluta liberdade, com uma equipa mínima, ao longo de vários meses. Com dois ou três técnicos e os actores que iam chegando e partindo mediante as necessidades. Todos compreendemos a vertigem instalada. Íamos ajustando, corrigindo, à medida que as dúvidas se dissipavam. Na rodagem privilegiei os planos sequência, não para tentar mostrar planos bonitos, mas para estar o mais próximo possível do que se filma. Todos líamos obras de Pascoaes nas horas vagas. À noite, no solar de Gatão onde ficámos alojados, as impressões do dia evadia-nos o espírito. Depois da matéria filmada, precipitávamo-nos na acção dramática e amorosa das palavras deste idealista sensual.
Fiz o filme como se Pascoaes estivesse vivo. Vagueei vezes sem conta nos corredores de sua casa em Gatão. Horas e horas passadas no seu escritório, que ainda hoje se mantém como o Poeta o deixou há mais de 50 anos. Livros nas estantes, livros empilhados no chão, folhas em cima das secretárias, tinteiros, cartas abertas, o tabaco de enrolar espalhado, estava tudo ali à minha disposição. Segui-lhe o rasto e imaginei-lhe os gestos repetidos dos seus dias. Estar simplesmente. Anular-me e esquecer que estava apenas a fabricar um filme. Como um passageiro assediado que revisita o mundo das sombras quis mostrar tudo sem impor nada. Guilherme Pinto, actor sem qualquer experiência de cinema e que faz de Pascoaes compreendeu muito bem as minhas intenções. Penetrar no próprio cenário natural do filme (o Solar de Gatão) e permanecer em silêncio até ao fim da aventura. Sentir e apalpar a transcêndencia, pois ela estava ali, nos objectos, nas paredes da casa, na paisagem. Reduzir a acção ao essencial, evitando os estereotipos e os tiques nervosos do cinema moderno. Queria muito voltar à tradição de um cinema feito na urgência, inspirado em cineastas que admiro profundamente: Pasolini, Bresson, Ozu. Inspirei-me muito no Evangelho Segundo Mateus de Pasolini. Mostrar o mesmo idealismo, a mesma força poética das palavras, a marginalidade daqueles que adoram o caminho pelo caminho. A viagem enquanto fonte inesgotável de aprendizagem.