TENTAÇÃO DE EXISTIRGostaria que o filme fosse visto como uma viagem, sem mapas nem itinerários definidos.
É um filme que pretende deixar inscrições fortes para que o espectador construa nele a sua própria experiência. Sombras apenas sugere, não promete nada. Revela o mundo de Pascoaes através de fragmentos e estilhaços da sua obra. A dificuldade está em ordenar esses estilhaços e dar-lhes uma unidade temporal, fílmica. Seria um trabalho árduo, infindável, querer mostrar toda a fúria criadora de Pascoaes, através das possibilidades de um texto, e num só filme. Porque o que dele temos a dizer é indizível. E porque a sua obra também é indizível. É um mundo saturado na imensidão da língua portuguesa, numa fusão com o seu próprio criador. Essa figura de alucinação que se misturava com as sombras e que se julgava, ele mesmo, sombra, porque no seu espírito já não distinguia mortos e vivos, claridade e treva, sonhos e figuras de um real palpável. O mundo de Pascoaes é um mundo místico, poético, cinematográfico.
Numa primeira leitura, a estrutura do filme pode revelar-se estranha. Sequências curtas, conversas soltas, ausência de centro, tudo aponta para uma certa incoerência. Na realidade esta desordem é intencional e tem como principio uma certa atmosfera circular, minimal, como se o filme apontasse para múltiplas direcções.
Tal como Pascoaes, nenhum dos seus personagens biografados (S. Paulo, S. Jerónimo, Camilo...) gozou de boa reputação. Demoliram revolucionariamente, com a simples força da sua mensagem, um tipo de sociedade fundada sobre a violência de classe, o imperialismo e, sobretudo, a escravatura das ideias e dos corpos. Sombras trata dessa impossibilidade, procurando diluir ao máximo o que é ficção e documentário num só corpo. Trabalhar num território de eleição onde essas diferenças não se colocam e deixam de ser importantes. Por isso, quis que este filme mexesse em certas feridas mal saradas. Porque acho que um filme deve ser um perigo, uma provocação. Deve saber transformar as cinzas depois do incêndio em fonte de vida. Acredito profundamente nisso. Vivemos num tempo de comércio entre as pessoas, sem qualquer espécie de fraternidade. O filme também trata desse imenso vazio espiritual.